Na Lama ou em um Palácio
Maria Fontaine
Você alguma vez já desejou que a vida fosse feita só dos momentos maravilhosos, quando de uma ou várias maneiras os seus sonhos de tornam realidade? Talvez esteja aprendendo novas coisas ou fazendo progressos em algo que lhe é importante. Talvez esteja ganhando dinheiro ou fazendo conexões com pessoas que têm fome da verdade espiritual, e tem uma vida vibrante com metas e propósitos; e sente a presença calorosa de Deus o preencher com bênçãos plenas. Mesmo que exija mais esforço do que o normal, a felicidade e a satisfação do que está conseguindo realizar algo, é emocionante.
Tenho certeza que todos gostaríamos de vivenciar isso o tempo todo, porém a vida segue o seu curso. Às vezes precisamos enfrentar tumultos que representam experiências difíceis de suportar. A situação talvez coloque à prova a nossa paciência e fé. Talvez nem consigamos encontrar um senso de valores no que fazemos, porque ou nos escapa ou nem existe. Talvez fiquemos insatisfeitos conosco mesmos ou com as circunstâncias se todo o nosso esforço para agir corretamente no final parece ser dominado por uma lama de problemas e dificuldades.
Nesse tipo de circunstância é fácil se sentir abandonado ou sem o amparo e orientação do Senhor. O dia a dia parece um constante esforço de caminhar na lama. Nossos maiores esforços aparentemente rendem pouco ou nenhum resultado, e parece que nos afundamos cada vez mais no lamaçal do desespero.
Mas é possível extrair encorajamento e motivação no fato de que não estamos sós. Muitos do povo de Deus na Bíblia até os dias de hoje passaram um tempo “na lama” até conseguirem realizar as importantes tarefas das quais Ele os havia incumbido.
Vejamos o caso de Paulo. Muitos cristãos o consideram um exemplo de fé invencível diante de constante perseguição e dificuldades durante o seu ministério. Todavia, apesar de ele ter uma atitude geralmente positiva em relação a essas provas, ele deve ter tido os seus momentos “na lama”. Pense nos dois anos que ele passou em Tarso, a sua cidade natal.
Em Damasco, depois do encontro com Jesus, quando se converteu, Paulo queimou as pontes com o passado. Dedicou-se totalmente à vida como discípulo de Jesus. Entregou tudo, mas descobriu que aquele fervor provocou um tumulto com muitos líderes judeus, transformando-o em persona non grata entre os seus antigos colegas judeus. Ficaram com tanta raiva que montaram uma emboscada para matá-lo antes de ele sair da cidade. Além disso, nenhuma das pessoas que ele considerava irmãos na fé em Cristo confiava nele. O fato de ele antes perseguir cristãos fez muitos duvidarem da sinceridade da sua conversão.
Abandonado e tendo que voltar à sua cidade,[1] eu tenho certeza que foi difícil Paulo não sentir que havia falhado. Mas ele não desistiu. Continuou usando as circunstâncias em Tarso para testemunhar, mesmo parecendo não obter grandes resultados. Ele perseverou fazendo um pouco aqui e um pouco ali por dois anos, até o Senhor enviar Barnabé com a visão de disseminar o Evangelho na região da Ásia Menor e, eventualmente por todo o Império Romano.[2]
E Elias?[3] Depois do encontro com a rainha Jezebel e o rei Acabe, quando previu uma seca e fome como resultado de seus pecados, Deus o enviou para um vale distante onde ele viveu ao lado de um ribeiro sem ter com quem compartilhar as mensagens de Deus. Elias provavelmente se sentiu inútil. Afinal, não tinha nada para fazer, apenas passar o tempo e lembrar de tudo o que ele havia sido e feito até então. E a história fica pior.
Imagine-se nessas mesmas circunstâncias. A essa altura ele já estava desesperado para ir embora e enfrentar o rei e rainha com outras mensagens de Deus. Mas a sua tarefa seguinte não foi ir para o palácio nem desafiar os profetas de Baal. Ele foi enviado à cidade estrangeira de Sarepta. Ali não houve nenhuma grande testificação, multidões para inspirar, ou inimigos para sobrepujar, apenas uma pobre mulher e seu filho, e o quartinho simples que lhe ofereceram onde se hospedar. Como seria possível ele se distanciar tanto da sua posição anterior? Mas ele obedeceu e permaneceu fiel, mesmo diante do que parecia uma derrota total.
Ele perseverou durante o período de dificuldades. E no momento certo Deus o convocou para enfrentar centenas de profetas de Baal. Chamar fogo do Céu foi a obra mais poderosa que Deus fez através de Elias até então. Mas ele não conseguia visualizar o resultado final durante aquele período em que passava pela “lama” e se sentia inútil. Considerando as aparências tudo o levava na direção oposta do que ele desejava fazer. Ter que ficar foragido em outro país deve ter dado a impressão de que Elias era fraco e covarde. Muito humilhante provavelmente! Mas quando ele voltou, a pedido de Deus e no poder do Espírito de Deus, ficou claro que Deus era o autor do milagre.
É verdade que muitos grandes homens de fé passaram por momentos em que estavam no auge, como vemos na história de José com Faraó, Elias quando chamou fogo dos céus, ou Daniel no palácio do rei. Mas a maior parte do tempo eles viveram na lama junto com as outras pessoas, porque nessa circunstância a sua fé se tornava visível e se fortalecia.
Um momento José vivia praticamente por cima de tudo, sonhando que até os irmãos mais velhos se curvavam diante dele.[4] Num próximo momento ele estava sendo vendido como escravo e levado para outro país.[5] Eventualmente ele alcançou o que poderia ser considerado o auge do poder, quando passou a administrar a casa de um dos personagens mais proeminentes do Egito. Mas isso não durou muito. Vítima da vingativa esposa do seu patrão, José foi parar na cadeia por não ceder.
Imagino o seu grau de desespero e sentimento de derrota. Parecia que ele estava acabado. Mas, por mais que se sentisse inútil, ele usou o pouco de que dispunha para continuar fazendo o melhor, mesmo que fosse interpretar sonhos para diferentes criminosos e alguns infelizes como ele. José fez bom uso do que tinha em mãos, lá no lamaçal da prisão. E uma vida que foi tocada naquela lama serviu de instrumento para alçá-lo á posição que Deus tinha preparado: a de segundo homem mais poderoso no governo no Egito.[6]
O poder e o amor do Senhor na vida dos Seus filhos deve ser demonstrado tanto nos piores como nos melhores momentos. Tem que funcionar na lama, não só no palácio.
Às vezes, esses períodos na “lama” podem ocorrer pouco antes do nosso maior serviço para o Senhor. Mas quem pode saber com certeza o que o futuro nos reserva? Como já foi dito: “Se não estamos mortos, é porque ainda não terminamos!”
Daniel[7] permaneceu fiel em muitas situações impossíveis nas quais o poder de Deus foi provado diversas vezes para Nabucodonosor. No entanto, em determinado momento a sua presença na corte do novo rei, Belshazar, deixou de ser bem vinda. Mas o que parecia o fim foi apenas um período de preparação para algo que ninguém podia prever. Deus interviu para que se instituísse uma nova ordem mundial que colocou Daniel em uma nova tarefa: instruir Dario, governante do império medo-persa.
E Moisés? Apesar de Deus ter permitido que Moisés fosse criado na corte, essa não seria a sua obra mais importante. Jovem, forte e autoconfiante, ele ainda não estava pronto para o período no “palácio”, ou seja, para ser o instrumento que Deus usaria para salvar o Seu povo.[8] Deus teve que colocá-lo na lama de Midiã, onde ele batalhou por anos no deserto tendo que confiar em Deus para tudo. Mas quando vemos o homem que ele se tornou, mesmo tendo dificuldade em se comunicar,[9] mas enviado por Deus para viver entre os escravos no Egito e com fé de que Deus cumpriria o Seu plano por meio dele, então tem-se o material necessário para milagres.
Os nossos “palácios” podem não ser todos iguais exteriormente. No caso de Moisés, parece que o seu “palácio” foi o cumprimento do seu desejo de salvar o seu povo da escravidão. Toda aquela responsabilidade e as lutas para guiar o povo de Deus talvez não pareçam ser um “palácio”, mas Deus vê os desejos do nosso coração e prometeu cumpri-los se Lhe entregarmos nossos caminhos. O que poderia ser melhor do que isso?
E Jesus? Ele certamente teve o seu período de “lama”! Ele, o Deus do universo, deixou a glória do Céu para passar por frustrações, dores e os pesares da nossa existência. Ele abriu mão do Seu poder ilimitado de fazer tudo o que já havia feito antes. Jesus disse: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça.”[10] Ele passou a maior parte do Seu tempo entre os pobres, os doentes e os desprezados, porque era onde havia uma necessidade desesperadora da Sua luz. Dessa forma pudemos entender a profundidade do Seu amor por nós.
Você já passou por um desses “lamaçais” e se indagou por que Deus haveria de afastá-lo de coisas importantes que estava fazendo para deixá-lo com a cara na lama ou em um lugar que mais parecia uma cela só que sem as barras? Você pode estar passando por um desses “momentos de profeta”, quando Deus o está preparando para algo que vai impactar outros e ecoar pela eternidade. Só entendemos o que é andar por fé quando andar por vista deixa de ser uma opção.
Se alguma vez sentiu que as coisas na sua vida deram tão errado que Deus não podia mais resgatá-lo e usá-lo para algo que Ele considerava grandioso, lembre-se das palavras do rei Davi. Ele cometeu atrocidades, no entanto sabia que se ele se arrependesse jamais seria abandonado pelo amor divino que sempre esteve ao seu lado.
“Para onde poderia eu escapar do teu Espírito? Para onde poderia fugir da tua presença? Se eu subir aos céus, lá estás; se eu fizer a minha cama na sepultura, também lá estás. Se eu subir com as asas da alvorada e morar na extremidade do mar, mesmo ali a tua mão direita me guiará e me susterá. Mesmo que eu dissesse que as trevas me encobrirão, e que a luz se tornará noite ao meu redor, verei que nem as trevas são escuras para ti. A noite brilhará como o dia, pois para ti as trevas são luz.”[11]
Todas as pessoas grandiosas que Deus usa como exemplos tinham algo em comum: estavam decididas a permanecer fieis mesmo quando não entendiam o que Deus tinha planejado para suas vidas. Cada uma teve experiências singulares projetadas pelo Senhor para ajudar a formar um caráter forte e temente a Deus. Talvez precisassem aprender a ser humildes, como no caso de José, ou apenas a obedecer em fé, por mais impossíveis que as coisas lhes parecessem, como no caso de Elias. Na situação de Daniel, uma das coisas que Deus aparentemente queria lhe ensinar era que, enquanto estivermos nesta vida, Ele terá um propósito para nós e jamais saberemos tudo o que o futuro nos reserva.
Jesus trabalha na nossa vida de maneiras específicas. Não existem duas pessoas exatamente iguais ou duas vidas que transcorram exatamente da mesma maneira. Não importa o que o presente e o futuro lhes reservem, lembre-se que tem a promessa divina de que Ele estará ao seu lado o tempo todo, quer no palácio, quer na lama.
Publicado originalmente em junho de 2013. Republicado no Âncora em janeiro de 2016.
[1] Atos 9:22–31.
[2] Atos 11:25–26, 13:1–3.
[3] 1 Reis 17,18.
[4] Gênesis 37:9–11.
[5] Genesis 37:28.
[6] Gênesis 39–41.
[7] Daniel 5, 6.
[8] Êxodo 2:10–15.
[9] Êxodo 4:1–14.
[10] Mateus 8:20 NVI.
[11] Salmo 139:7–12 NVI.
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