A Lei e os Profetas—1a. Parte

Abril 15, 2024

Peter Amsterdam

[The Law and the Prophets—Part 1]

No Sermão da Montanha, Jesus dedicou boa parte de Sua pregação para abordar a Lei e os Profetas, o equivalente às Escrituras Hebraicas e o que os cristãos chamam de Antigo Testamento.

As Escrituras hebraicas, comumente conhecidas pelo povo judeu como Tanakh, contêm os mesmos livros do Antigo Testamento da Bíblia cristã, mas com uma divisão e ordem diferentes. Quando Jesus fala de “a lei e os profetas”, no geral entende-se que é uma maneira abreviada de referir-se a todas as Escrituras hebraicas (o Antigo Testamento).

No Sermão da Montanha, Jesus oferece uma nova perspectiva e entendimento das Escrituras e demonstra como se relaciona com ela:

Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir. Digo-lhes a verdade: Enquanto existirem céus e terra, de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço, até que tudo se cumpra.

Todo aquele que desobedecer a um desses mandamentos, ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será chamado menor no Reino dos céus; mas todo aquele que praticar e ensinar estes mandamentos será chamado grande no Reino dos céus. Pois eu lhes digo que se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus e mestres da lei, de modo nenhum entrarão no Reino dos céus (Mateus 5:17-20).

Ao introduzir Sua fala dizendo para Seus ouvintes para não pensarem que Ele viera abolir (destruir, em algumas traduções) a Lei ou os Profetas, indica o que algumas pessoas pensavam, ou diziam que era o que Ele estaria fazendo, vendo que Sua abordagem da Lei era diferente da interpretação tradicional.1 Entretanto, Jesus deixa bem claro que não viera abolir nem destruir as Escrituras, mas cumpri-las.

Jesus vai além, usando a expressão de autoridade “digo-lhes a verdade”, para declarar que até que o céu e a terra passem nem um jota ou um til da Lei será invalidado. Ao ouvirem Jesus Se referir ao céu e à terra (toda a criação) passarem antes da Lei, Seus ouvintes entenderam que Ele dizia que a Palavra de Deus jamais ficará sem o devido cumprimento. Tudo que está escrito será cumprido.

O que significa a afirmação de que Ele veio para cumprir a Lei e os Profetas, isto é, a totalidade das Escrituras? A resposta aparece em várias partes do Evangelho segundo Mateus, no qual encontramos vários exemplos de passagens do Antigo Testamento que se cumpriram em Jesus. A seguir, incluímos alguns exemplos:

Isso aconteceu para se cumprir o que fora dito pelo profeta Isaías: "Eis o meu servo, a quem escolhi, o meu amado, em quem tenho prazer. Porei sobre ele o meu Espírito, e ele anunciará justiça às nações”2Mateus 12:17,18).

Ora, tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta, que diz: Dizei à filha de Sião: Eis que o teu Rei aí te vem, humilde e assentado sobre uma jumenta e sobre um jumentinho, filho de animal de carga”3Mateus 21:4,5).

Segundo Jesus, o objetivo das Escrituras do Antigo Testamento não fora abolido, mas mudara. Como elas apontavam para a vinda do Messias e Ele havia chegado, as Escrituras deviam, a partir daquele momento, ser interpretadas e praticadas à luz dos ensinamentos de Jesus.

Em Mateus 5:21-48 Jesus dá exemplo do entendimento mais profundo dos ensinamentos da Torá (Lei) ao dizer: Vocês ouviram o que foi dito… mas Eu lhes digo… A partir desse ponto, o ensinamento de Jesus passa a orientar Seus discípulos na interpretação e na aplicação prática da Lei. Em vez da observância literal de regras, eles passam a perceber os princípios morais que orientam essas regras.

No Sermão da Montanha, o padrão estabelecido por Jesus vai muito além da aplicação exterior da Lei e, deixando de se concentrar em um conjunto de regras, dá mais importância à resposta que vem de dentro do coração. Ele mostra não ser adequado obedecer à Lei ao pé da letra. Era esse o tipo de obediência praticado pelos escribas e fariseus, sobre o qual Jesus disse: “Pois eu lhes digo que se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus e mestres da lei, de modo nenhum entrarão no Reino dos céus” (Mateus 5:20).

Nos tempos de Jesus, os escribas eram os que, por profissão, ensinavam, explanavam e interpretavam as Leis de Moisés. Os escribas e os fariseus eram meticulosamente obedientes à Torá (Lei). Pelo fato de a justiça ser entendida como a obediência literal à Lei, ninguém era considerado mais justo que eles. Excedê-los na obediência era virtualmente impossível. Entretanto, a justiça à qual Jesus Se referia não era a observância literal da Lei.

Jesus prossegue: “Todo aquele que desobedecer a um desses mandamentos, ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será chamado menor no Reino dos céus; mas todo aquele que praticar e ensinar estes mandamentos será chamado grande no Reino dos céus” (Mateus 5:19). Vale lembrar que ao falar do reino dos céus, refere-se à basileia, o reino de Deus em nossas vidas e não ao céu após a morte. A mensagem de que uns serão grandes e outros pequenos no reino não diz respeito à condição da pessoa após a morte, mas se o indivíduo é um bom ou mau representante daqueles cujas vidas têm Deus como rei.

Ao cumprir a Lei e os Profetas, Jesus introduziu uma nova era para a humanidade, que vai além da obediência da letra da Lei para discernir e aplicar seus princípios norteadores. Por essa nova forma de aplicação, a Lei deixa de ser um código de conduta para indicar um caminho para uma “justiça maior”, personificada em Jesus e muito superior à antiga forma de observância literal da Lei.4

Jesus não aboliu o Antigo Testamento nem poderia, já que dEle falava e por Ele foi cumprido. Como veremos nos próximos versículos do quinto capítulo de Mateus, Ele vai além do conceito de que a justiça resulta da obediência inflexível à Lei, para introduzir um entendimento mais profundo e uma aplicação mais ampla dos princípios que a regem. Assim fazendo, Ele revela a atitude interior de espírito que converge com as Bem-aventuranças e produz a justiça que sobrepassa em muito a dos escribas e dos fariseus.

No Sermão da Montanha Jesus apresenta seis exemplos como contrastes entre o que “foi dito” nas Escrituras e a mais completa e ampla explicação oferecida por Jesus do significado das Escrituras para os que O seguem.

Jesus ensinou usando as expressões: “Vocês ouviram o que foi dito” e “digo-lhes, porém”. No primeiro caso, Ele diz: “Vocês ouviram o que foi dito aos profetas …” Em quatro dos cinco exemplos aqui citados, a frase é abreviada, mas mantém o significado. Jesus estava ensinando que Ele estava dando ao mandamento um significado mais amplo.

Cada um dos seis exemplos citados por Jesus é baseado em uma passagem ou tema na Lei Mosaica. Os seis exemplos incluem assassinato, adultério, divórcio, juramento, punição retributiva e o amor pelo próximo. Ao falar de cada um, Jesus ensina princípios relacionados à prática de Seus ensinamentos.

No primeiro, estabelece a importância maior do espírito da Lei, não apenas a letra. Ao citar o mandamento “Não matarás” (Êxodo 20:13), Jesus vai além da análise do fato externo do homicídio, e aborda nossa motivação que se traduz em nossos atos, nossas atitudes, nossos pensamentos e nas intenções do nosso coração. Deus está preocupado com a fonte interior geradora da ação, bem como com a própria ação. Para cumprir a intenção da Lei não basta não praticar o homicídio. É preciso não se permitir ter desprezo e ódio pelos outros e, em contrapartida, cultivar uma atitude positiva e amorosa em relação aos demais.

Outro princípio que Jesus traz à tona é que a Lei deve ser entendida não apenas como uma lista de todas as coisas que não devem ser feitas, uma relação de imperativos negativos. O foco deve ser viver de forma a agradar a Deus e glorificá-lO. Jesus nos deu uma nova perspectiva e entendimento para nos levar além da observância de um conjunto de regulamentos; afastar-nos da mentalidade de “não faça isto nem aquilo”, para vivermos de acordo com os princípios que sustentam a Lei, tal como nos mostram Seus ensinamentos.

O verdadeiro objetivo é viver um relacionamento com Ele, viver para Sua glória. A questão não é se estamos seguindo mecanicamente uma série de regulamentos, mas se nos assemelhamos a Cristo e se a nossa vida interior está em conformidade com o que Ele ensinou. É possível que, mesmo sem termos matado ninguém, nossos corações estejam cheios de raiva e desprezo pelos outros? Nesse caso, estamos pecando.

Jesus procurou ajudar Seus seguidores a ir além da observância da Lei para terem uma compreensão mais profunda dos princípios da Lei original. Ele estava criando um novo povo de Deus, que viveriam dentro do Reino de Deus, que terá de ir além da busca da justiça pela obediência a um conjunto de regras para procurar se harmonizar com o espírito e a intenção da Lei de Deus.

Publicado originalmente em outubro de 2015. Adaptado e republicado em abril de 2024.


1 John R. W.  Stott, The Message of the Sermon on the Mount (Downers Grove: InterVarsity Press, 1978), 70. Darrell L. Bock, Jesus According to Scripture (Grand Rapids: Baker Academic, 2002), 131.

2 R. T. France, The Gospel of Matthew (Grand Rapids: Eerdmans, 2007), 186.

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