Julho 11, 2023
Os cristãos hoje têm por garantido que Deus é nosso Pai, mas poucas pessoas param para pensar no que esse nome realmente significa. Sabemos que Jesus ensinou Seus discípulos a orarem “Pai Nosso” e que a palavra aramaica Abba (“Pai”) é uma das poucas que Jesus usou e que permaneceu sem tradução na nossa versão do Novo Testamento. Hoje em dia, quase ninguém acha isso estranho, e muitos ficam surpresos ao descobrir que os judeus da época de Jesus e até mesmo Seus próprios discípulos ficaram perplexos com Seus ensinamentos…
A afirmação de Jesus de que Deus era Seu Pai foi feita pela primeira vez em uma discussão sobre o Sábado, o dia de descanso. Jesus afirmou que Ele podia curar no Sábado porque, em Suas palavras: “Meu Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando” (João 5:17). Em outras palavras, embora Deus tenha descansado no sétimo dia de Sua obra da Criação, a Sua obra de preservação e, em última análise de redenção, ainda estava em andamento. Além disso, Jesus associou Seu próprio ministério com a obra contínua do Pai…
Os cristãos chamam Deus de Pai porque foi o que Jesus ensinou Seus discípulos. Ele fez isso não para enfatizar que Deus era seu Criador (embora, é claro, Ele fosse), mas porque Ele era o Redentor. Jesus tinha um relacionamento singular com Deus Pai e queria compartilhar isso com Seus seguidores. Durante o tempo que passou na terra Ele foi bastante claro a esse respeito. Ele disse: “Quem me vê, vê o Pai” (João 14:9). “Eu e o Pai somos um” (João 10:30)...
Somos encorajados a orar ao Pai e capacitados a fazê-lo porque o Filho nos uniu a Ele através da Sua morte e ressurreição (Gálatas 2:20). Por este ato, Jesus nos associou a Si mesmo como Seus irmãos. A diferença é que Ele, por natureza, é o Filho divino e sem pecado do Pai, enquanto nós somos pecadores adotados por Ele. O próprio Jesus afirmou isso após a Sua ressurreição, quando disse a Maria Madalena para ir aos Seus discípulos, a quem então Se referiu como irmãos, e lhes revelar o que estava para acontecer: “Não me segure, pois ainda não voltei para o Pai. Vá, porém, a meus irmãos e diga-lhes: Estou voltando para meu Pai e Pai de vocês, para meu Deus e Deus de vocês” (João 20:17).—Gerald Bray[1]
Ao longo dos Evangelhos, Jesus Se refere a Deus como Pai e, na oração do Pai Nosso, ensina os discípulos a fazer o mesmo. Para algumas pessoas, chamar Deus de Pai pode ser motivo de ofensa, pois remete aos conceitos de patriarcado e subjugação da mulher, motivo pelo qual querem que sejam excluídas as referências a Deus como Pai. O livro de Charles Talbert Reading the Sermon on the Mount, oferece uma boa explicação de por que Deus é chamado Pai, da qual incluo aqui um resumo.[2]
Há duas visões de linguagem religiosa nas igrejas cristãs hoje. A primeira é relacional; a segunda, política. A relacional pressupõe que a fala religiosa surge do relacionamento contínuo entre Deus e Seu povo. É semelhante ao que acontece nos relacionamentos humanos. A maneira como alguém fala com Deus se assemelha à forma como se comunica com outra pessoa do seu relacionamento.
Entender a linguagem religiosa como política pressupõe que ela derive da projeção da organização das relações humanas na terra na tela do céu e, portanto, qualquer mudança na ordem social humana exige uma mudança equivalente na maneira como se fala do mundo celeste. Assim sendo, se Deus for chamado de Pai, é considerado que se esta projetando no céu um sistema social patriarcal no nível humano. Presume-se assim que a linguagem usada para Deus reflete o mundo patriarcal no qual a Bíblia foi escrita, e também que, tendo sido escrita por homens, foi atribuído a Deus o gênero masculino.
O ponto de vista relacional da linguagem religiosa entende que a divindade transcende a sexualidade, que Deus não é masculino nem feminino. Contudo, as Escrituras se referem a Deus em termos que denotam o gênero masculino e, em algumas ocasiões, o gênero feminino: “Como mulher em trabalho de parto, eu grito, gemo e respiro ofegante... Será que uma mãe pode esquecer do seu bebê que ainda mama e não ter compaixão do filho que gerou? Embora ela possa se esquecer, eu não me esquecerei de você! Assim como uma mãe consola seu filho, também eu os consolarei” (Isaías 42:14; 49:15; 66:13).
Sempre que é feita menção a Deus em termos femininos, isso se dá por meio de uma associação, a comparação de duas coisas. Deus é comparado a uma mãe, mas jamais chamado de “Mãe”.
Algumas passagens bíblicas se referem a Deus em termos masculinos, também de forma associativa: “O Senhor sairá como homem poderoso, como guerreiro despertará o seu zelo” (Isaías 42:13) e em metáfora/comparação: “Tu, Senhor, és o nosso Pai, e desde a antiguidade te chamas nosso Redentor. Nós somos o barro; tu és o oleiro. Todos nós somos obra das tuas mãos” (Isaías 63:16; 64:8).
Na Bíblia, Deus é associado ao gênero masculino e tratado metaforicamente por Pai. Jesus orou, Aba, Pai (Marcos 14:36).
Por que nas Escrituras Deus é às vezes associado à figura materna, mas não é chamado de mãe; enquanto além de ser associado à figura de pai, é assim chamado? Há duas razões principais.
A primeira tem a ver com o entendimento de que Deus é em relação à Sua criação. Deus é todo-poderoso, superior à criação e a tudo criou do nada, distinto assim do universo. Algumas religiões ou sistemas de crença têm outra interpretação, a qual considera Deus e a criação a mesma coisa ou que a criação é parte de Deus. Em geral, os sistemas de crença que não fazem a distinção entre o Criador e a criação são categorizados como panteístas.
Ao longo das Escrituras, desde o Gênesis, lemos que Deus existe acima e independente da criação. Se as Escrituras chamassem Deus de “Mãe”, poderia prejudicar o entendimento da transcendência de Deus. Chamar o Criador de “Mãe” nos tempos antigos poderia dar a entender que a criação foi um processo de nascimento e, por isso, o universo e tudo que nele há seriam partes de Deus. Dessa forma, o universo seria parte de Deus e, portanto, divino (panteísmo), em vez de criado por Deus (teísmo).
Deus Se revelou aos escritores do Antigo Testamento como um Espírito e, portanto, nem macho nem fêmea. Entretanto, referiu-Se a Si mesmo metaforicamente como do gênero masculino, assim mantendo a “independência de Deus” e evitando a percepção de que o mundo tivesse sido “parido” em vez de criado. Isso permite nos relacionarmos a ele como um ser, sem o entendimento equivocado de sua relação com a Criação.
Uma importante razão para chamar Deus de Pai surge da prática de Jesus. Nos Evangelhos, Jesus não apenas falou de Deus como Seu Pai, mas dirigiu-Se a Deus como Pai (Marcos 13:32). Ele expressou sua relação com Deus por meio do conceito de um Pai amoroso que tem grande interesse e profundo amor pelos Seus filhos, e convidou Seus discípulos a participarem de um relacionamento amoroso com Deus Pai.]
Jesus também deixou claro que Deus é um Espírito (João 4:24) e, portanto, sem gênero, mas falou da Sua relação com Deus usando o conceito de Pai, Ele chamou Deus de Seu Pai, e convidou Seus seguidores a fazerem o mesmo. Entretanto isso é para expressar a personalidade de Deus, não declarar Seu gênero. Para aqueles cuja experiência com a figura paterna torna difícil chamarem Deus de Pai, há outras expressões que podem ser usadas, tais com Senhor, Deus, Todo-Poderoso, Criador, etc.—Peter Amsterdam
Em sua jornada humana, Jesus teve um relacionamento com Deus de uma forma que nenhum profeta de Israel jamais sonhou ou ousou ter. O Espírito do Pai habitava em Jesus; Jesus usou um nome para Deus que escandalizaria tanto a teologia quanto a opinião pública de Israel, o nome que escapou da boca do carpinteiro nazareno: Aba.
As crianças judias usavam essa forma coloquial íntima de fala ao se dirigirem a seus pais, e o próprio Jesus a empregou com Seu pai adotivo, José. Como termo para divindade, no entanto, não tinha precedentes não apenas no judaísmo, mas em qualquer uma das grandes religiões do mundo. Joachim Jeremias escreveu: “Aba, como uma forma de se dirigir a Deus, é … uma declaração autêntica e original de Jesus. Vemo-nos diante de algo novo e surpreendente. Aqui reside a grande novidade do evangelho”.
Jesus, o Filho amado, não guarda para Si esta experiência; Ele nos convida e nos chama a compartilhar o mesmo relacionamento íntimo e libertador. Paulo escreveu: “Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus” (Romanos 8:14-16).
A maior dádiva que Jesus nos concedeu foi podermos vivenciar o Aba. “Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar” (Mateus 11:27). —Brennan Manning[3]
Publicado no Âncora em julho de 2023.
[1] https://www.thegospelcoalition.org/essay/god-as-father.
[2] Charles H. Talbert, Reading the Sermon on the Mount (Grand Rapids: Baker Academic, 2004), 113–15.
[3] Brennan Manning, Abba’s Child: The Cry of the Heart for Intimate Belonging (Tyndale House, 2014).
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